terça-feira, 26 de abril de 2011

CRISTO E A ORIGEM DO INDIVIDUALISMO

Quando criança durante as celebrações da Semana Santa era envolvido por uma atmosfera rica em simbolismos que ia dos interditos em torno dos hábitos alimentares, passando pelo silêncio compungido na Sexta-Feira da Paixão em respeito à morte Daquele que sacrificou a sua vida por amor ao próximo até o Sábado de Aleluia, quando, aqui em Itapagipe, participava da catártica queima de Judas – uma mistura de quermesse com gincana que terminava com o pau-de-sebo na tarde nublada do domingo.

      Algumas poucas décadas se passaram e o caráter ritualístico ficou derretido pelo caminho junto com os ovos de Páscoa, sendo substituído hoje por um feriadão prolongado onde pagamos em penitência profana nos engarrafamentos e nas filas quilométricas para atravessar a Baía de Todos os Santos enquanto o milagre de abertura do mar não nos garante uma travessia mais tranqüila até a Ilha de Itaparica. Longe de atribuir nostalgicamente essas transformações a uma decadência da nossa vida coletiva e buscar na hipertrofia do individualismo que nos define a causa da nossa queda, prefiro pensar apenas que mudamos.
 
      E foi sob o signo da mudança que aprendemos com a história da Paixão de Cristo a passagem de uma relação com Deus fundada nos laços da comunidade para uma vinculação baseada no amor e na fé do crente com a divindade. A saga de Jesus serviu como narrativa exemplar a configurar o individualismo como um valor da cultura ocidental ao longo de dois mil anos. Que Deus-Pai estivesse disposto a imolar seu único filho no calvário era a prova de seu amor e benevolência a fundar uma nova fratria, sob a forma da humanidade, cimentada não mais na junção do corpo da coletividade à divindade, mas representada pelo corpo individual oferecido em sacrifício como reconhecimento de um novo pacto: agora direto entre Deus-Pai e todos nós, seus filhos.

      A Boa Nova anunciada encontrava no amor (um sentimento) a garantia da aliança num reconhecimento recíproco entre o fiel e Deus, os filhos e o Pai, através da fé. Ligação que apresentava uma face libertária ao romper com pré-condições de lugar de nascimento, basculando para o fórum íntimo do indivíduo a responsabilidade de sua salvação; mas ao mesmo tempo, colocando aos olhos dos pobres mortais a necessidade de se assegurar desse amor reconstruindo esse laço a cada dia, em uma busca incessante de reconhecimento sob o olhar do Pai. Estava em gestação uma nova conformação subjetiva, essa nossa especificidade cultural, assentada agora na dúvida, na incerteza e na culpa diante de uma dívida impagável para com Aquele que sacrificou o seu único filho pelo bem de toda a humanidade. Dívida compartida em nossa cultura por todos e cada um de nós, filhos de Deus.

      Como corolário da nossa cultura, experimentamos a angústia e as inquietações diante do futuro a nos espreitar sempre com uma possibilidade apocalíptica a se consumar sob a forma de extinção da vida, sem garantia de redenção. Pois, se ao Cristo foi dada a possibilidade da ressurreição (ele só ficou sabendo depois) – isso não o impediu de vacilar e se angustiar no caminho do seu destino trágico, inclusive interrogando o Pai acerca das razões do seu abandono. Para nós, tributários dessa cultura, abandonados à dúvida e divididos em relação ao nosso querer, fica o extenuante e contínuo exame a buscar uma causa para os nossos males em algum ato cometido ao longo do caminho ao nos confrontar com o sofrimento, possível sinal de não merecimento do amor do Pai.

      Por isso, desconfio quando as razões para os impasses sociais contemporâneos tomam o individualismo como um índice de degeneração cultural. Diante de uma explicação desta natureza penso no que a clínica psicanalítica pode nos ensinar. Quanto mais obstinadamente buscamos negar uma assertiva, tomando-a pelo seu contrário, é justamente aí onde reside o seu valor de verdade. Ao vincular a salvação no amor Cristo inaugurou o individualismo como um valor positivo da nossa cultura – o qual estamos dispostos a negar sempre que tivermos confrontados com a espinhosa questão: Pai, por que me abandonaste?



Cláudio Carvalho - Coordenador do Fórum de Psicanálise e Sociedade da APBa e Coordenador do DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS NO MAM (ccarvalho19_23@hotmail.com)

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