Um professor desenvolveu, certa vez, uma metáfora sobre a efemeridade da vida e das pessoas: é como se no começo da vida estivéssemos sentados na última fila de um cinema, vendo todos à nossa frente. Com o passar dos anos, transporíamos as fileiras anteriores, deixando para trás e perdendo de vista os outros. Na velhice, sentados na frente, restariam poucos companheiros de viagem.
Uma bela metáfora, à qual nos remetemos ao assistir ao cativante filme “O curioso caso de Benjamin Button”. Quanta delicadeza na exposição de temas marcantes, como: os ciclos da vida, as suas perdas e seus ganhos; o amor com seus encontros, desencontros, reencontros; o modo como cada um pode produzir o percurso da sua história e o fim! Quantas sutilezas ao abordar o trabalho do Tempo, artista incansável, sarcástico e pouco generoso quando resolve nos esculpir os rostos e os corpos; guerreiro ávido, em sua missão implacável de ir nos devorando, nem sempre silenciosamente, mas nos presenteando, paradoxalmente, com a possibilidade de construirmos uma história rica, a nossa aventura pessoal, ora de belezas, ora de comédias e de tragédias - enfim, deste material, nem sempre reciclável, de que é feita a nossa existência.
A sequência em que os ciclos acontecem em relação ao personagem é o avesso do roteiro determinado pela natureza - curiosíssima idéia de uma vida que começa de trás para frente: Benjamin nasce velho e rejuvenesce com o passar dos anos, enquanto todos que estão à sua volta seguem o curso inexorável rumo à decrepitude. Assim, se nós, mortais comuns, nascemos com o fado e o fardo do envelhecimento e da finitude, assistimos surpresos ao curso da vida de Benjamin Button, mortal incomum, condenado a tornar-se jovem, contudo não menos destinado ao confronto humano estrutural com o desamparo, a dependência, o medo, a dor, a solidão, a perda e a morte. O filme denuncia as dificuldades que isto nos traria, esfacelando (docemente, ainda bem!) uma certa fantasia de que as coisas seriam mais fáceis, se invertidas.
A verdade gritante e assustadora que o filme escancara é exatamente o ponto em que a infância e a velhice se assemelham: aqueles na tenra infância ou na extrema fragilidade da velhice não são donos da sua própria vontade (e quem sempre o será?). Nestas etapas, alguém precisa significar-lhes os atos, protegê-los, controlar-lhes a vida, trocar-lhes as fraldas, como aponta um dos personagens.
A aventura de Benjamin teria o peso de total desventura se o pai não o tivesse deixado num lugar em que ele pudesse reconhecer-se especularmente e se não houvesse a mulher capaz de tomar a criança como causa de seu desejo, disposta a humanizar aquele ser deformado, herança incômoda; se esta mãe não tivesse com seu olhar, percebido "um milagre", onde outros enxergavam uma anomalia, oferecendo-lhe um lugar no seu discurso, inserindo-o numa história, que ele continuará a construir, não incorporando a idéia da morte iminente que outros lhe destinavam, ao contrário, optando por viver intensamente o que o seu tempo lhe permitisse.
Também intenso é o encontro amoroso, embora condenado a se consumir pelo curso da vida em direções opostas – enquanto ele rejuvenescia a sua amada perdia o viço. Amor marcado pelo signo do corte, da perda. Mas não seria essa a natureza de todo amor?
A nossa época é dominada por um discurso que promete a felicidade plena e de preferência ao lado da “cara metade”. Ser feliz é um imperativo que interpela o sujeito e faz com que levemos a vida tentando nos assegurar de que somos dignos de sermos amados, movimentando a economia e nos fixando numa temporalidade marcada pela busca incessante das insígnias de sucesso (amoroso) no aqui e agora.
Ao passarmos pela vida encerrados num eterno presente e numa procura infinita, podemos acumular experiências, mas ao preço de não as incorporar como parte de nossa história, uma vez que esta só é possível de ser contada no interior de uma variação temporal: como chegar na Quarta-Feira de Cinzas contabilizando as bocas beijadas, mas sem a possibilidade de contar uma história de amor no carnaval.
É justamente na possibilidade de contar uma história, que o filme valoriza o intervalo, às vezes intenso, que vai do nascimento até o encontro marcado com a finitude. Na subversão do tempo (envelhecer/rejuvenescer), o cinema produziu uma alegoria curiosa, permitindo a redescoberta do tempo e seu curso resoluto rumo ao desconhecido - nossa única divisa no horizonte.
Essa ficção cinematográfica tem o valor de recuperar, no presente, pescando na memória, apoiada nos restos arqueológicos das cartas e das fotografias amareladas, o fio tênue que nos liga ao passado, transportando-nos para um tempo redescoberto, onde possamos reviver o sabor, o aroma e a lembrança esfumaçada dos acontecimentos.
Melhor ainda se tiver alguém ao nosso lado na fileira da frente do cinema para compartilhar a narrativa.
Ania Reis de Aragão - Psicóloga, Psicanalista - membro da Associação de Psicanálise da Bahia (ania@ufba.br)
Cláudio Carvalho - Coordenador do Fórum de Psicanálise e Sociedade da APBa e Coordenador do DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS NO MAM (ccarvalho19_23@hotmail.com)
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