sábado, 28 de maio de 2011

“O LEITOR”: SEGREDOS, CULPAS, OMISSÕES E VERDADES.

Crônica vencedora do concurso: Seja Cronista do Circuito Saladearte – 2009


Quem pode ainda duvidar de que todos guardamos, a sete chaves, um mundo próprio habitado por segredos, sentimentos inconfessos e contraditórios, histórias omitidas e vivências repreensíveis nunca antes reveladas, muito diverso daquele que mostramos? Qual de nós ousará afirmar, sem sombra de dúvidas, que se não sabe profundamente sobre si próprio, conhecerá suficientemente bem aquela pessoa com quem mantém ligações íntimas e com a qual compartilha ou compartilhou o cotidiano durante certo tempo? Quem atestará que seremos capazes de compreender-lhes incondicionalmente os sentidos e motivos para seus atos? E de separar a imagem com poucas fraturas que a outra tem para nós - construída e burilada pelo filtro da nossa história e da nossa fantasia - das ações, que à luz da nossa consciência moral julgaríamos irreparáveis?

E se você descobrisse o segredo que este próximo quer ocultar por lhe parecer vergonhoso, sendo esta uma informação valiosa para esclarecer uma situação em que ele se põe em risco, teria o direito de anunciá-la, em nome de fazer-lhe o bem? E se este mesmo segredo que pode salvar o outro, expõe o seu próprio segredo: é falar ou calar? O que você faria? E mais ainda: será que não são exatamente estes enigmas que o outro nos coloca, que o tornam tão interessante e atraente aos nossos olhos? Estas são algumas questões que o envolvente filme “O Leitor”, adaptação bem produzida, embora com algumas lacunas, do livro de Bernhard Schlink, nos convida a responder.

A história se passa na Alemanha do pós-guerra. Michael Berg, um adolescente de 15 anos, passa mal na rua e é socorrido por uma mulher desconhecida, com mais que o dobro da sua idade, que o ajuda e com quem, alguns meses mais tarde, iniciará a sua vida sexual e uma intensa e conflitiva história de amor. Eles só se dirão os próprios nomes após alguns encontros íntimos, o que sinaliza a atração irresistível entre eles e um certo silêncio que se prolongará em relação às suas vidas fora daquele cenário onde se encontram.

Hanna Schmitz (encenada por Kate Winslet, merecidamente premiada com o Oscar de melhor atriz) é uma mulher de personalidade forte, de poucas falas, com traços marcantes de rigidez, mas ao mesmo tempo protetora e cuidadosa com Michael. Ela parece encarnar no imaginário do adolescente uma espécie de representação dupla: a mãe e a mulher - isto fica ainda mais claro para o leitor de Schlink. Ao vê-la despir-se por uma fresta da porta, no ritual mágico que deve para um adolescente constituir a visão do corpo feminino, ele se vê tragado pelo desejo, passando a encontrá-la todos os dias. Ela o recebe e, de forma metódica, despe-o, prepara-lhe o banho, enxuga o seu corpo, o acolhe, reavivando a memória de traços da experiência infantil prazerosa com a figura materna. Contudo, entre permitida por não ser a mãe e até certo ponto “proibida” por lembrar atos da mãe e pelas diferenças de idade, classe social e nível intelectual, ela o faz desvendar as possibilidades do seu desejo sexual e do ser homem, questões que inevitavelmente terão lugar primordial na vida psíquica dos adolescentes.

O ritual se completa, quando Hanna solicita que ele leia para ela. As palavras de Homero, Goethe, Tolstói, Dieckens e outros, pela voz de Michael, são sorvidas com avidez por uma Hanna envolvida, atenta, sua dureza dissolvida, chegando mesmo a mostrar-se sensibilizada. Sempre brindam o final destes momentos recheados de literatura fazendo amor. Entre leituras e erotismo, prazeres e desavenças, o envolvimento prossegue, até que um dia, sem maiores explicações, ela vai embora, deixando-o perdido, perguntando-se, como sempre acontece com quem se vê abandonado pelo ser amado, o que havia feito para produzir este fim. A vida, a história, os motivos de Hanna sempre permanecerão para Michael como enigmas, que inscreverão traços defensivos a se repetir na relação do personagem adulto (bem interpretado por Ralph Fiennes) com as mulheres, onde nunca se deixará entregar ao amor profundamente.

Até aí, a narrativa, apesar de bem mostrada, transcorre como uma história de amor predestinada ao desencontro. Entretanto, o espectador não demorará muito tempo para o encontro com o insólito: quando Michael se torna estudante de Direito e participante de um seminário onde os alunos teriam que assistir a julgamentos de crimes de guerra, ele reencontra Hanna no banco dos réus, sendo julgada por sua participação como guarda da polícia nazista, responsável pela seleção de mulheres que seriam levadas à morte nos campos de concentração. Uma das testemunhas esclarece que Hanna escolhia as mais frágeis e solicitava que lessem para ela, repetição de um traço marcante da sua relação com Michael e relacionado ao segredo que ela ocultava.

Para ele, instalava-se um emaranhado de questões e um vazio de certezas. O que nunca fora esquecido, mas restava adormecido, retornava agora, com toda a força, tomando a forma de tortura interna e de dilemas éticos. As imagens e cenas do passado daquela que lhe possibilitou tamanhas descobertas e lhe despertou tantos sentimentos paradoxais, vinham à tona e conviviam simultaneamente com as do presente, conforme a temporalidade própria de que o nosso funcionamento psíquico é capaz.

Quando, durante uma fase do julgamento, Michael descobre o segredo que Hanna tentava insistentemente ocultar e que poderia atenuar muito a sua pena, ele se vê diante de novas confrontações morais: teria ele o direito de expor, em nome de uma possível defesa de Hanna, o seu segredo, aquilo que para ela era uma grande ferida narcísica, já que envidou tantos esforços para escondê-lo, preferindo pelo seu sistema de valores, enfrentar a acusação criminal e a prisão perpétua? Por outro lado, no que se refere à responsabilidade de Michael, já que não seria um observador neutro, mas participante da história de Hanna, estando de posse desta informação, teria o direito de calar-se? Falar para “o bem” de Hanna? Omitir-se para preservar-se, ou seja, para seu próprio “bem”, mantendo em posição acomodada o seu próprio segredo? Alertá-la para o que a sua posição poderia trazer de danos irreversíveis? Se Hanna tinha um segredo, era ela própria o segredo tortuoso e torturante de Michael. As dúvidas o paralisam e depois a culpa pelo que se isenta de fazer o persegue e martiriza.

Não se pode esquecer também que Michael integrava a geração pós-guerra que teve que conviver com as heranças das atrocidades produzidas, ou pelo menos permitidas pela geração precedente, com as conseqüências trágicas de uma das piores máculas da história da humanidade, tendo provavelmente “a missão histórica” de redimi-las. Os questionamentos de Michael não o levam a inocentar Hanna, mas a sua perplexidade está na estranheza de que a mesma Hanna pudesse ser cuidadosa e algoz, humana e tão desumana. Abre-se aí uma profícua discussão filosófica sobre o Bem, a justiça, a responsabilidade, a dignidade, a liberdade, que o livro em certo momento traz como um rico diálogo de Michael com o pai, um professor de filosofia, estudioso de Kant e Hegel, a quem procura para aconselhar-se, o que o filme não traz, ficando uma lacuna imperdoável.

A história continua com um Michael dividido, tentando conviver com seus fantasmas, ensaiando arduamente a missão de compreender os sentidos de Hanna e de unir as Hannas praticamente imiscíveis, no entanto, confrontando-se com as marcas indeléveis que esta mulher produziu na sua história e esforçando-se para reconciliar-se com estas, para ressignificá-las, ressignificando-se, portanto. Ambos os personagens empreenderão, cada um à sua maneira, importantes tentativas de reparação e saídas para seus conflitos, muito interessantes, seja para o espectador, seja para o leitor, neste caso mais minunciosamente.

“O Leitor” nos faz concluir que ninguém é um “livro aberto”: as leituras dos sentidos – ou “sem-sentidos” - que levam alguém a cometer determinados atos, repetições, a fazer certas escolhas, ou a eximir-se delas, na construção da própria aventura pessoal, são intrínsecos, nem sempre decifráveis até para quem os comete. Embora nunca sem preços a pagar, pois cada um carregará em si o ônus das consequências produzidas para aqueles que estão imersos, como produtores e atores, na história.

A riqueza do humano pode residir na nossa indiscutível capacidade de ser simultaneamente “mais imoral do que acredita, como também muito mais moral do que sabe”, como diria Freud. E, por esta humanidade, dificilmente saímos incólumes diante das nossas faltas e fraquezas, culpas e vergonhas, sombras e silêncios, mentiras e verdades.


Ania Reis de Aragão - Psicóloga, Psicanalista - membro da Associação de Psicanálise da Bahia (ania@ufba.br)

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